Michelle sequestrou a eleição: demônios são o novo “kit gay”

Hoje vi adultos em pleno domínio de suas faculdades mentais subindo hashtag “intolerância religiosa é crime” nas redes sociais. Tivessem sido pagos pela campanha de Jair Bolsonaro, eu compreenderia. Não foram.

Os métodos bolsonaristas de manipulação do debate funcionam dia sim outro também porque jogam com dois valores fundamentais da burguesia progressista: o medo de parecer burro e a necessidade de parecer virtuoso.

Suponha que o grande objetivo de todos esses bravos guerreiros de redes sociais fosse realmente salvar a democracia e derrotar Jair Bolsonaro. O lógico seria fazer algo que prejudicasse a candidatura.

Nem precisa de tanto esforço. Não foi um governo, foi praticamente um atropelamento. E vemos uma campanha sem propostas, centrada unicamente na figura do presidente.

Inventar moinhos de vento impulsionou a candidatura de Jair Bolsonaro nas últimas eleições. O grande problema que ele tinha diante de si era a realidade. Ele é o presidente da República e vivemos um desastre misturando carestia e atiradores violentos.

Em 2018, a candidatura era pródiga em lançar factóides divisionistas, contando com a sinalização de virtude dos formadores de opinião. Qualquer absurdo, principalmente os que esbarram na linha de algum preconceito, era largamente amplificado pela indignação.

Até hoje, quatro anos depois, muita gente reclama quando digo isso. “Então não podemos denunciar os erros do bolsonarismo senão ele cresce?”, indagam. Claro que podem, desde que assumam o risco da própria ineficiência.

Se as “denúncias” fossem feitas com eficiência, o resultado seria obrigatoriamente desfavorável a Jair Bolsonaro. Como são feitas mirando primeiro a sinalização de virtude e depois a eficiência, acabam beneficiando o bolsonarismo.

Cada um é livre para fazer o que quiser. Ocorre que nossos bravos guerreiros digitais são, na prática, militantes bolsonaristas porque beneficiam o bolsonarismo. Não há como fugir disso, é a realidade.

Dividir para dominar é uma das regras mais antigas de conquista de poder e continua funcionando. O nosso tecido social esgarçado faz com que esta seja a opção das campanhas majoritárias que lideram as pesquisas.

Jair Bolsonaro vai além. Aposta todas as suas fichas no preconceito arraigado de um lado e de outro sem se importar com incentivo à intolerância.

O “kit gay” funcionou assim. Apostou que a elite progressista ficaria tão escandalizada com a homofobia a ponto de perder as estribeiras. Acabaria por comentar a questão extrapolando o que o cidadão comum, que é de maioria conservadora, considera adequado em escolas.

A entrada de Michelle Bolsonaro na campanha tirou a discussão da realidade e da pauta de costumes para entrar em algo mais poderoso, a religiosidade popular. Só funcionou porque ela tem sido apedrejada e xingada muito mais do que criticada.

Foi meu amigo Alessandro Alvarenga, designer mineiro, que saiu com essa: “os demônios são o novo kit gay”. O cálculo não é moral, é só matemático. Se ataca o minoritário para gerar uma reação que escandaliza o majoritário.

Houve um silêncio ensurdecedor diante do preconceito religioso que chamou Michelle Bolsonaro de louca e fanática ao ver um vídeo de intercessão.

Ela converteu em barulho e espaço de imprensa ao compartilhar um vídeo de Lula num ritual da Irmandade da Boa Morte, talvez o mais legítimo sincretismo entre candomblé e catolicismo da nossa história. “Isso pode?”, perguntou.

É evidente que vai estimular o preconceito de evangélicos que consideram demoníaca qualquer manifestação espiritual sem ter de literalmente dizer isso.

Aí entra a matemática. Os evangélicos são cerca de 31% da população, segundo o Datafolha. As religiões de matriz afro são 0,31%, segundo o IBGE. Se incorporarmos aí os espíritas, já que pode haver erro de identificação, são mais 2%.

O público ligado aos evangélicos, que é majoritário, viu a postagem de Michelle como reação e verá as críticas a ela como desproporcionais ou até injustas. Se preconceito religioso é crime, por que calaram quando foi com ela?

A mágica está feita. Resta saber se essa eleição terá ou não seu Mister M.

Madeleine Lacski

 

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