A rede de desinformação que espalhou notícias falsas (fake news) e deturpadas pró-Bolsonaro pelo aplicativo WhatsApp durante as eleições do ano passado, com o uso de robôs e disparo em massa de mensagens, continua pelo menos parcialmente ativa até hoje. Dados obtidos pela reportagem apontam que 80% das contas no aplicativo de mensagens estavam em funcionamento no início da semana.
O UOL analisou 1.690 linhas telefônicas nacionais e internacionais, contas e grupos de WhatsApp mapeados por dois coletivos de ativistas digitais que procuraram a reportagem: “Programadores Brasileiros pela Pluralidade e Democracia” e o “Hackers pela Democracia”. Das 1.690 contas de WhatsApp associadas às linhas telefônicas, 1.355 seguem na ativa.
No topo desta lista estão contas de WhatsApp com características de robôs —programas que operam as contas automaticamente para espalhar mensagens como se fossem pessoas de verdade.
A frequência dos disparos mostra essas características, segundo três especialistas independentes consultados pelo UOL, um deles um investigador do Ministério Público especializado em crimes cibernéticos e corrupção. Uma das contas chegou a enviar 14 mensagens diferentes em um período de apenas 30 segundos.
De 86 números de telefone celular internacionais identificados pelos ativistas digitais de onde partiam disparos em massa de fake news durante as eleições, 38 (ou 45%) continuam ativos.
Dos 1.504 números nacionais que mais enviavam fake news nos 53 grupos públicos mais ativos de apoio ao então candidato Jair Bolsonaro monitorados durante as eleições –a maioria criada e administrada por números internacionais–, 1.283 (ou 85%) estavam com suas contas no aplicativo de mensagens ativas no início desta semana quando foram checados pela reportagem.
Em uma terceira listagem de 100 números nacionais que disparavam fake news durante as eleições, de acordo com o levantamento feito pelos ativistas digitais, 34 seguem na ativa nos grupos de WhatsApp.
Dinheiro envolvido
Para Marcelo Vitorino, professor e consultor de marketing digital que também atua em campanhas políticas, o fluxo dos disparos significa que não se tratou de um envio natural de mensagens de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, o chamado disparo “orgânico”. Poderia haver dinheiro envolvido.
“Uma possibilidade é um comportamento de robô”, afirma ele. “A outra possibilidade, que é mais grave, é você pagar pessoas para fazer esse trabalho manualmente. Você tem duas formas só. Orgânico não parece ser. É uma organização de disseminação de conteúdo”, diz o professor.
Caso seja comprovado, isso pode ser considerado crime porque tanto você contratar quanto ser contratado é crime eleitoral.”
Além da periodicidade dos disparos, as contas de WhatsApp associadas às linhas nacionais que mais disparam fake news e afins possuem outras características da atuação de robôs.
Bloqueadas para chamada e sem informações no perfil
As contas não trazem nome, foto ou informações de contato no perfil do aplicativo. O UOL telefonou aleatoriamente para dezenas dos números com essas características na lista. A maioria estava bloqueada para receber chamadas, apesar de ativa no aplicativo de mensagens. Apenas uma pessoa, moradora do interior de Minas Gerais, atendeu a ligação. Negou o envio das mensagens e afirmou que já havia registrado dois boletins de ocorrência por desconfiar que a linha e a conta no WhatsApp tivessem sido clonadas.
O professor David Nemer, doutor em antropologia da tecnologia da informação pela Universidade de Indiana e professor na Universidade de Virgínia, nos EUA, afirma que é normal que algumas linhas telefônicas estejam proibidas de receber ligações embora permaneçam como usuárias de WhatsApp livres para disparar mensagens.
“Se você tiver uma maneira, e existem várias, de poder receber o torpedo do WhatsApp para validar seu número, você pode colocar qualquer número ali”, contou Nemer.
É muito fácil. Tem sites que permitem a você enviar e receber mensagens. Eles lhe dão um número provisório”
Desde março do ano passado, Nemer acompanha o comportamento de usuários e grupos aplicativos em apoio ao presidente Jair Bolsonaro.
Atividade diminuiu, mas continua
Após as eleições, a atividade destes perfis diminuiu, mas parte continua ativa e disparando mensagens em grupos de apoio ao presidente, que depois são compartilhadas organicamente de grupo em grupo.
A reportagem do UOL entrou em cinco grupos de apoio ao presidente e ao governo federal no WhatsApp onde são compartilhadas fake news, ataques a adversários, mensagens de apoio, notícias, vídeos e links do YouTube em geral. Alguns grupos estão ativos desde a campanha eleitoral do ano passado.
Em todos, há um padrão: os grupos ficam silenciosos até “estourar” o assunto do dia ou da vez. A partir daí começam a chegar os memes, vídeos e links com fake news ou deturpações do assunto em questão, invariavelmente enviados por uma das contas associadas às linhas com características de robôs. São defesas de figuras do governo e do presidente, ataques a adversários e deturpação de notícias e fatos reais, como os incêndios na Amazônia, por exemplo. Não é raro a mesma mensagem circular em diferentes grupos de uma vez —alguns têm os mesmos administradores.
No início da semana, por exemplo, circulavam convocações para uma manifestação a favor do governo em Brasília marcada para o fim de setembro.
Na quinta-feira, um meme foi compartilhado em alguns grupos. Nele, havia uma crítica sobre a forma “como a esquerda ‘revolucionou’ a sociedade”. A montagem usa fotos para condenar supostos conceitos de homem, mulher, opressores, oprimidos, política, arte e cultura adotados por esse espectro político.
Algumas semanas atrás, em outro exemplo, foram compartilhados links e memes com a notícia falsa de que os incêndios que se alastraram pela Amazônia tinham sido causados por ONGs ambientalistas. No dia em que começou a circular, o presidente havia feito, sem provas, a mesma acusação.
14 mensagens em 30 segundos
A conta analisada que mais disparou mensagens durante as eleições enviou 413 mensagens políticas aos grupos —entre links de notícias falsas e verdadeiras, convocações para atos de campanha, imagens e vídeos contra os adversários do candidato do PSL— em um período de três dias (de 14 a 16 de outubro, menos de duas semanas antes do primeiro turno), uma média de cinco mensagens por hora. A segunda conta mais ativa chegou a disparar 14 mensagens diferentes em um intervalo de apenas 30 segundos.
Ao todo, as 1.504 contas enviaram 14.090 mensagens aos grupos nos três dias, de acordo com o monitoramento feito por um dos grupos de ativistas.
O monitoramento das contas e grupos sugere uma atuação organizada e forte atuação de robôs: algumas fontes centrais determinam o tema e criam o conteúdo a ser compartilhado. Esse material é enviado para grupos de coordenação nacionais.
De lá são repassados para grupos públicos regionais, estaduais e municipais. Dali os participantes colhem e espalham o material em grupos de família e amigos, de onde começam a ser compartilhados organicamente.
Os chips internacionais com contas de WhatsApp foram utilizados no Brasil em disparadores automáticos de mensagens em massa, como revelaram o UOL e a Folha no ano passado. É uma das formas de dificultar o rastreamento do real dono das linhas em caso de identificação da prática.
O WhatsApp veta oficialmente o uso de disparadores em massa de mensagens, mas em uma pesquisa rápida na internet é possível ver que diversas empresas ainda oferecem o serviço. A legislação eleitoral também proíbe a prática.
Dentre as linhas internacionais analisadas, a maioria é dos Estados Unidos, mas também há números da Argentina, México e de outros países da América Latina e da Europa.
Procurada pela reportagem, por meio de sua assessoria de imprensa, a Presidência da República pediu para encaminhar as perguntas para o PSL, o que foi feito, mas não houve resposta. A assessoria do WhatsApp disse que a empresa, sediada nos EUA, comentaria o caso apenas hoje.
UOL